Como a Educação Audiovisual contribui para lidar com os problemas pedagógicos na pandemia

Por Ana Bárbara Ramos, Felipe Leal Barquete e Isaac Pipano

Poucos meses após o início da pandemia, em março de 2020, a Semente promoveu uma Campanha de co-criação de soluções pedagógicas na pandemia na pandemia, com o objetivo de construir um diálogo com as educadoras e educadores que enfrentavam inúmeras dificuldades para adaptação de suas práticas. Essa campanha foi o resultado de um processo de investigação para compreendermos a melhor maneira de contribuir com as escolas no contexto urgente da pandemia. Contexto que chegou sem pedir licença e que nos deixou atordoados com o primeiro impacto de uma onda que parece ainda longe do fim. Com o passar do tempo, compreendemos alguns modos pelos quais poderíamos ajudar concretamente os profissionais da educação nesse momento e, assim, decidimos compartilhá-los.

A partir da centralidade do audiovisual na promoção das aulas remotas e híbridas, identificamos alguns problemas que apareceram com recorrência nos relatos docentes dos primeiros meses da quarentena:

(1) a dificuldade de acesso aos equipamentos por parte de professoras e estudantes;

(2) a dificuldade técnica para lidar com as tecnologias digitais, em especial os processos de produção e manipulação de imagens e sons;

(3) a dificuldade quanto às possibilidades pedagógicas da linguagem audiovisual;

(4) a dificuldade de engajar os estudantes nos novos formatos e dinâmicas das aulas remotas.

O desafio pedagógico da incorporação da linguagem e da tecnologia audiovisual no formato do ensino híbrido se deu (e ainda dá) em muitos níveis, e demanda diferentes medidas para a sua resolução. Diante desses problemas, e conscientes dos limites impostos pelo contexto histórico e social do país, nos propusemos a formatar algumas bases teóricas e práticas que visam a construção de alternativas metodológicas, em parceria com cada instituição educativa com as quais nos relacionamos.

Nos tópicos abaixo vamos explicitar um pouco mais o modo como temos entendido a Educação Audiovisual e como ela pode contribuir para resolver ou minimizar os problemas descritos acima.

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1. A dificuldade de acesso aos equipamentos por parte de professoras e estudantes

Talvez esse seja o problema estrutural mais grave que abateu todo o sistema da Educação brasileira. Problema que tem raízes profundas na história de desigualdades, distribuição desigual da riqueza, racismo e das injustiças sociais que ainda estruturam e moldam nosso país e que ficou bastante evidente nas diferentes dificuldades enfrentadas por crianças, adolescentes e suas famílias para manter uma rotina de estudos de qualidade e se desenvolver adequadamente.

Durante a pandemia, muitos dos estudantes mais pobres foram apartados das possibilidades educativas engendradas com a apropriação das ferramentas digitais na educação, por terem menos acesso aos recursos tecnológicos. Uma pesquisa lançada pela Unicef no início deste ano explicitou que cerca de 5,5 milhões de crianças e adolescentes matriculados não desenvolveram nenhuma atividade em outubro de 2020. Do outro lado desse contexto, muitas professoras e professores tiveram que fazer investimentos pessoais para garantir condições infraestruturais mínimas para promover a mediação de aulas remotas e híbridas.

Em alguns estados, os governos têm investido na ampliação de recursos tecnológicos nas escolas e a tendência é que, gradualmente, o acesso às tecnologias digitais seja popularizado na rede pública, em resposta ao trauma da pandemia na educação brasileira. Entretanto, os danos causados às crianças e adolescentes serão mensurados somente nos próximos anos e exigirão ações inclusivas e afirmativas para serem minimizados.

Nesse sentido, como a Educação Audiovisual pode ajudar a minimizar o impacto desse problema no momento atual? Oferecendo uma metodologia que incorpore o possível, o que está acessível aqui e agora e faça daquilo que está disponível as bases de uma experiência de ensino-aprendizagem relevante para estudantes e professores.

Não é preciso câmeras profissionais, celulares da última geração, ilhas de edição caras, internet de alta qualidade. Claro que, quanto melhor for a infraestrutura tecnológica nas duas pontas do processo educativo, mais possibilidades de mediação podem ser concretizadas remotamente. Porém em um momento de calamidade como esse, podemos desenvolver estratégias que foquem naquilo que é prioritário para as professoras na relação com a sua turma. O fortalecimento dos vínculos afetivos, ao constituir um lugar de interação entre os estudantes; o estímulo à participação nas aulas, de modo que os estudantes possam dar materialidade à sua experiência na pandemia, por meio de produções textuais e audiovisuais, e com isso sentir no ambiente das aulas remotas um espaço de acolhimento e escuta; o envolvimento, mesmo de modo assíncrono, daqueles estudantes que só podem acessar a internet esporadicamente e sua integração em projetos de estudos com o compartilhamento dos resultados da aprendizagem em murais colaborativos (como o padlet ou o Google Sala de Aula) ou até mesmo grupos de mensagens instantâneas, (como o WhatsApp e o Telegram), por exemplo, minimizando assim o risco da altíssima evasão escolar.

Em nossa perspectiva da Educação Audiovisual, partimos de uma análise do contexto da instituição educativa, suas condições estruturais, a realidade socioeconômica da comunidade em que está inserida, bem como sua proposta político-pedagógica e, a partir desse diagnóstico, convidamos os profissionais da escola contextualizá-la e/ou desenvolver uma abordagem metodológica que seja relevante para as práticas da escola. Trata-se de um trabalho pedagógico cuidadoso que visa qualificar a experiência de aprendizagem dos estudantes e fortalecer a sua relação com o ambiente escolar, reconhecendo a singularidade de cada instituição de ensino.

Com isso, as professoras se sentem mais seguras e confiantes ao perceber que conseguindo acessar e contribuir com a aprendizagem dos seus estudantes. Estes, por sua vez, se sentem mais integrados com a escola, com seus amigos, e estimulados em participar das experiências das aulas remotas e híbridas.

2. A dificuldade técnica de muitas professoras para lidar com as tecnologias digitais e os processos de produção e manipulação de imagens

Por enquanto, não existe na maioria dos cursos de licenciatura do país alguma disciplina orientada para a produção e edição de imagens e sons, bem como o uso de ferramentas digitais. Embora a chamada “convergência digital” venha se intensificando na sociedade há alguns anos, foi na pandemia que essa realidade bateu na porta das professoras. Agora, além de tudo, os profissionais da Educação também precisam se virar e aprender a produzir vídeo-aulas, integrar ferramentas digitais em suas estratégias de aprendizagem e mediar práticas que incorporem um novo desafio: a produção e gestão de dados e arquivos digitais em diversos formatos pelos seus estudantes.

Além da resistência natural de quem não se preparou para essa realidade, e não visualiza como incorporar esse tipo de formação em meio às inúmeras tarefas profissionais e exigências familiares do cotidiano, a experiência concreta negativa, tal como vêm ocorrendo em muitos casos ao longo da pandemia, parece corroborar com o sentimento de frustração e impotência, levando muitas professoras a aceitar a solução mais óbvia de transferir para o ambiente das telas o formato da aula expositiva, nas quais as professoras falam e os estudantes apenas ouvem. Porém, essa não parece ser uma solução estimulante para nenhuma das pontas do processo educativo.

Para ajudar a lidar com esse problema, te convidamos a inverter o binóculo. Ao invés de considerar as dificuldades técnicas um obstáculo para a inovação ou adaptação das suas práticas no contexto remoto ou híbrido, que tal partir do seus propósitos pedagógicos – as experiências ou os resultados de aprendizagem que almeja – e, tendo eles como centralidade, começar a imaginar maneiras simples de introduzir os recursos audiovisuais, aos poucos, dentro do campo de possibilidades que demandam habilidades já adquiridas, ou aquelas cujo desenvolvimento está ao seu alcance imediato?

Por exemplo, em uma aula de Biologia, os estudantes podem fotografar as plantas e outros seres vivos do seu quintal, ou do entorno da sua casa, e compartilhar a foto no grupo do WhatsApp, ou em um mural do padlet. A partir daí, é possível conversar sobre uma série de questões ligadas à zoologia, botânica, matemática, português, etc. Uma prática como essa, para nós, tem o nome de dispositivo de criação audiovisual e envolve recursos acessíveis para a maioria. A Pedagogia do Dispositivo mobiliza a linguagem audiovisual por meio de pequenos exercícios e propostas a partir de experiências estimulantes com o uso de smartphones ou câmeras portáteis. São jogos, desafios com o audiovisual, simples e acessíveis para professores e estudantes. Além disso, os dispositivos também podem ser realizados de forma offline incluindo aquelas e aqueles que não possuem acesso à banda larga ou mesmo pacotes de dados.

Dessa forma, a Educação Audiovisual pode colaborar para uma melhor apropriação metodológica do potencial pedagógico da linguagem audiovisual, uma vez que articula tanto a necessidade de manejar os equipamentos, e assim superar limitações técnicas, quanto a possibilidade de dar a eles novos usos para a construção coletiva do conhecimento e de experiências de aprendizagem.

Na Semente, nós vivenciamos experiências juntos e em seguida conduzimos as professoras a construir seus planos de aula com a incorporação de metodologias ativas com o audiovisual, como os dispositivos. Com isso, novos recursos didáticos são incorporadas ao repertórios dos professores no momento do planejamento, e outras articulações se tornam possíveis na elaboração de estratégias de mediação de aprendizagens.

3. A dificuldade quanto às possibilidades pedagógicas da linguagem audiovisual

Nas nossas experiências em escolas e cursos de formação de professores, desde 2014, observamos que, majoritariamente, o audiovisual aparece nos planejamentos de aula das professoras de forma secundária, ilustrativa do livro didático, como se fosse mobilizado em aula para corroborar alguma informação já apresentada num texto impresso. Geralmente, o uso de imagens e sons segue a dinâmica tradicional da transmissão do conhecimento. No entanto, é curioso pensar que essa perspectiva existe há muito tempo no país e muitas abordagens sugerem sua superação.

É claro que existem muitas exceções, mas é possível afirmar que, de modo geral, a linguagem audiovisual ainda não ocupou o lugar que pode e deve ocupar no campo da Educação, por se tratar de mais uma linguagem disponível na sociedade (e uma das mais importantes hoje em dia) que instaura processos de subjetivação e sociabilização de crianças, jovens e adultos.

Por se tratar de uma linguagem historicamente associada a uma tecnologia cara e ao entretenimento, ou para fins educativos ilustrativos, as possibilidades pedagógicas da produção audiovisual só passaram a ser realmente acolhidas pelos profissionais da Educação nas últimas décadas, a partir da popularização dos aparatos digitais. É muito pouco tempo quando consideramos um histórico de formação de professores voltado para uma educação tradicional e tecnicista, com poucos e bons respiros e inovações apresentadas pelo movimento da educação nova e da educação popular.

O fato é que, salvo mudanças drásticas e inimagináveis no curto prazo em nossa sociedade, as imagens estão aí, os sons estão aí, as redes sociais estão aí e a dinâmica de comunicação social se baseia na articulação desses elementos para colocar em jogo os saberes, narrativas e perspectivas da realidade, influenciando diretamente na possibilidade de experiências coletivas de mundo que vivemos cotidianamente. Esse é, portanto, definitivamente, um problema de educadores e educadoras.

Aqui, de novo, apresentamos uma abordagem acolhedora, que demonstra para os profissionais da Educação que não é preciso fazer uma nova graduação para se atualizar a respeito dos novos recursos tecnológicos e suas possibilidades pedagógicas. Percebe que quase todas e todos nós já estamos familiarizados com as dinâmicas de produção e visionamento de conteúdos audiovisuais? A questão aqui é o que mobiliza essa experiência, quais gestos estão articulando essas práticas. São experiências de entretenimento ou de mediação de aprendizagens? São gestos de registro observacional ou de vinculação ativa na realidade? São gestos de pesquisa de um saber ou de resolução de um problema? São gestos de criação de narrativas ou de construção de conhecimentos?

Por meio da Educação Audiovisual, nós construímos um trabalho de sensibilização para esse repertório já existente em todas e todos nós, e abrimos um espaço de escuta, conversa e construção de saberes pedagógicos, colaborativamente, em que, a partir da prática de dispositivos audiovisuais, as professoras refletem sobre possíveis articulações com suas experiências concretas, problematizações pertinentes ao cotidiano em sala aula, e, assim, nasce o processo de contextualização metodológica – ou mesmo o de desenvolvimento de novas metodologias.

Com isso, as professoras passam a levar em consideração outros gestos e experiências possíveis com a linguagem audiovisual, no chão da escola. A produção de uma imagem ou de um som passa a ser uma experiência viva, ativa, de se vincular no mundo, e, portanto, de promover práticas educativas.

4. A dificuldade de engajar os estudantes nos novos formatos e dinâmicas das aulas remotas

Em uma conversa com uma estudante do ensino fundamental em meio a pandemia, foi assim que ela descreveu a experiência das aulas remotas: “Parece que estou em uma prisão no zoológico. Isso aqui é o zoomlógico“. São várias as reações similares que verificamos ao longo da pandemia, e certamente essa frustração se estende às educadoras que não conseguem promover práticas estimulantes com os estudantes nesse contexto.

Nas práticas educativas com os estudantes, em 2020, constatamos que mesmo em meio aos impactos emocionais da pandemia, com as dificuldades dentro de casa, as dificuldades de aprendizagem e os problemas estruturais de acesso às tecnologias, a maioria dos estudantes se esforça e quer estar presente, quer participar e constituir para si uma experiência de escola, não concorda?

Com excessão de problemas muito graves dentro de casa, ou de nenhum acesso aos recursos tecnológicos, problemas esses que fogem ao nosso escopo de atuação e demandam um outro tipo de suporte, acreditamos que o engajamento dos estudantes nas experiências de aprendizagem remotas e híbridas está diretamente ligado ao quão relevante e significativa aquela experiência é para eles, aqui e agora. Assim como nós, as crianças e adolescentes estão tentando dar um sentido para essa experiência difícil da nossa história, e sabemos que os processos educativos se tornam mais relevantes na medida que reconhece o repertório prévio dos estudantes, os valoriza e promove aprendizagens a partir da interação entre os seres mediados pelo mundo, como nos lembra o professor Paulo Freire. A “mediação do mundo” nesse caso diz respeito aos processos sociais, culturais e naturais nas suas diversas matizes e modos de expressão. Já a “interação entre os seres” está dificultada pelo isolamento social.

Talvez esse seja o problema que temos a maior satisfação de contribuir para resolver, ou minimizar, através da Educação Audiovisual. Temos relatos concretos de professoras com a partilha dos efeitos da nossa metodologia no fortalecimento dos vínculos afetivos e no despertar da motivação durante os cursos de formação. Veja esses depoimentos aqui.

Um dos exemplos é a realização de sessões de cineclube dentro da sala de aula online. Uma professora de uma escola de Ensino Fundamental I desenvolve com seus estudantes a prática de ver filmes juntos. A escola está inserida dentro de uma comunidade quilombola e o recorte dos filmes exibidos trata de questões étnico-raciais. Em uma ação simples, a professora conseguiu estabelecer uma relação direta com o território em que as crianças vivem e tornou a aula mais interativa, pois todos os estudantes desejaram pensar e refletir sobre os filmes e, consequentemente, sobre eles mesmos e a realidade ao redor. Ao invés de propor aulas expositivas, na qual só ela falaria ou leria um livro e os estudantes acompanhariam de casa, a professora optou por uma relação de troca e pela produção colaborativa do conhecimento. Isso resulta numa relação mais autônoma dos estudantes que se sentem capazes de falar sobre o que conhecem e vivenciam dentro da sala de aula. Além disso, eles ainda produzem conteúdos, a partir dos filmes, como vídeos de um minuto de duração sobre algum tema que surgiu pela visionamento coletivo dos filmes da sessão cineclubista.  

Na Semente, nós apresentamos estratégias concretas que fortalecem a comunicação entre professores e estudantes e favorecem a consolidação de comunidades de aprendizagem. Como dissemos acima, os dispositivos articulam a tecnologia e a linguagem na mobilização de experiências no mundo, estimulando que estudantes e professores acessem o seu próprio imaginário e sentimentos, interajam com os seres vivos e não-vivos, vivenciem uma experiência de vinculação com o espaço da sua casa, do seu bairro ou do seu território, reflitam criticamente sobre algum objeto do conhecimento, em suma, estimulam a participação do ser no mundo e na cultura. O efeito disso na prática da sala de aula é o fortalecimento dos canais de comunicação entre todos os integrantes da turma e a consolidação de uma verdadeira comunidade de aprendizagem, que pode se expandir em rede com a devida orientação pedagógica, e promover trocas em outros grupos da escola, ou até mesmo com outras escolas ou iniciativas educativas do mundo através das conexões virtuais.

Com isso, ao invés de ser experenciada como uma prisão, a vivência das aulas remotas e híbridas apresentam para os estudantes um leque de possibilidades de novas experiências que, de um lado, ampliam a sua sensibilidade e o estado de presença para lidar com a sua realidade concreta, seus vínculos e afetos; e de outro, engaja o estudante em uma dinâmica de produção colaborativa do conhecimento e de compartilhamento dos seus saberes nas redes da inteligência coletiva.

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Esperamos que esse conteúdo tenha te inspirado e ampliado suas reflexões a respeito da educação audiovisual e do ensino remoto e híbrido. Se te ajudou, pode ajudar mais pessoas também! Nos ajude a expandir esse debate compartilhando esse texto para quem precisa fazer germinar outras possibilidades pedagógicas!

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