Por Felipe Leal Barquete
Estamos vivendo uma prática educativa em roda que mais se assemelha a uma vivência griô, um roda de partilha de saberes entre uma ancestral da comunidade e as crianças. Nesse caso em especial, a linguagem audiovisual desempenha um papel central na configuração da experiência vivida. É através dela que a vivência é planejada e concretizada. Antes dessa roda, as crianças promoveram um mapeamento do seu próprio universo vocabular através da exibição de filmes e a reflexão sobre a sua realidade sociocultural, e entre brincadeiras, painéis, saraus e produções audiovisuais, amadurecem a proposta de investigar algumas palavras que lhes pareciam mais importantes.
Assim, ao invés de aprender o significado e o sentido das palavras a partir do livro didático, elaborado em tempos e espaços distantes da vida delas, elas foram saber o que os seus ancestrais têm a dizer sobre aquelas palavras: como elas existem concretamente na vida da comunidade? Qual é o sentido existencial dessas palavras aqui e agora?
O relato acima apresenta uma das experiências vividas com o projeto “O cinema e as palavras” e resultou, entre outras coisas, na criação do filme “Tesouro Quilombola”, realizado no quilombos Gurugi-Ipiranga (PB) em 2019. Ela nos revela como podemos aproximar a Educação Audiovisual do Método Paulo Freire, originalmente concebido para a educação de jovens e adultos.
Vejamos abaixo como podemos pensar essa aproximação a partir de cinco tópicos que nos parecem centrais para acolher as influências e inspirações da práxis freireana ao mesmo tempo em que preservamos a dimensão ética e política do seu pensamento pedagógico.
1. Concepção de educação
O pensamento e a prática psicopedagógica proposta por Paulo Freire formula uma pedagogia enraizada na vida das subculturas da sociedade, e instaura um processo reflexivo de criação e recriação do mundo através da conscientização, pelo ser, do seu papel de sujeito sociocultural e histórico.
Nesse sentido, a educação deve ser um ato coletivo, solidário, onde se ensina e se aprende mutuamente, de tal modo que o diálogo é o aspecto fundante do processo educativo: nas vivências na comunidade, na codificação e descodificação das palavras e temas geradores, na problematização da situação existencial dos educandos e na conscientização a respeito do poder de dizer a sua palavra, os seus valores, narrar a sua história e produzir o seu mundo.
Na Semente, trabalhamos com uma concepção de educação audiovisual que parte do entendimento de que a criatividade é um aspecto fundante do amadurecimento cognitivo e socioemocional nos educandos. Além disso, pela força da sua linguagem e dos processos de produção de imagens e sons, as vivências e práticas educativas com o audiovisual estabelecem pontes entre a escola e a comunidade, entre saberes, valores, sensibilidades e histórias de vida, possibilitando a instauração de arranjos pedagógicos colaborativos inter ou transdisciplinares, nos quais o educando estabelece uma relação direta com a sua cultura e é posicionado como sujeito do processo de aprendizagem individual e coletivo.
Desse modo, ver e criar imagens e sons num contexto educativo estão relacionados ao gesto de estabelecer vínculos dialógicos, investigar o real, partilhar olhares e sensibilidades, instaurar comunidades de aprendizagem e construir mundos em comum.
2. Concepção de mediação
Nos círculos de cultura propostos pelo professor Paulo Freire, o mediador atua como animador dos debates, coordenadores que, no entanto, não dirigem, mas criam as condições para promover a participação ativa dos educandos.
A “participação criadora” do mediador se funda no entendimento de que é o grupo de educandos que estabelece o seu próprio percurso de reflexão e aprendizagem. O papel da mediação é orientar, favorecer esse processo de modo que a experiência de aprendizagem proposta pelo método se realize a partir do engajamento e da apropriação, pelo grupo, dos recursos e das dinâmicas apresentadas.
Nas vivências com o audiovisual, sejam as práticas de ver ou de criar imagens e sons, a mediação se estabelece na instauração de processos colaborativos de partilha, reflexão, pesquisa e invenção: (1) As atividades de cineclube horizontalizam as relações entre educadoras e educandos, e tem o potencial de favorecer o diálogo reflexivo a partir das questões abordadas nas (ou provocadas pelas) imagens exibidas; (2) Nas práticas de criação audiovisual, o grupo estabelece um percurso criativo-pedagógico, que é tanto interno – subjetivo e intersubjetivo – como externo – objetivo e empírico -, mobilizando os educandos em atividades na comunidade e no território.
Nesses processos, o mediador pratica a escuta ativa e se atenta às motivações e aos movimentos que o grupo estabelece ao longo do percurso, contribuindo com problematizações e orientações que favorecem o processo de criação e aprendizagem.
3. Pesquisa e Codificação
No método de alfabetização de jovens e adultos, Freire sugere que a construção do repertório de símbolos e a codificação plástica do instrumental de trabalho dos círculos de cultura já fazem parte do processo de aprender, de modo que é importante que essa etapa do trabalho seja realizada na, por e com as pessoas da comunidade, em uma ação dialógica entre educadores e educandos.
O processo de pesquisa de campo e codificação das palavras e temas geradores, das fichas de cultura e demais materiais de apoio se configuram, portanto, como um ato criativo, um momento comum de descoberta sobre como a realidade social de um determinado grupo se realiza na vida concreta, no pensamento e no imaginário dos seus integrantes.
Nesse processo, a educação audiovisual contribui diretamente tanto no processo da pesquisa participante, uma vez que as vivências de criação audiovisual favorecem o acesso às memórias e à subjetividade dos integrantes da comunidade; como na produção de imagens que captam a realidade concreta da comunidade e, portanto, carregam em si um dinamismo semântico cuja força pragmática pode ser problematizada nos círculos de cultura, articulando o teor afetivo, o peso crítico e o acúmulo histórico das palavras, imagens e sons.
4. Descodificação, objetivação e reflexão
Os círculos de cultura produzem modos próprios, solidários e coletivos de pensar. As palavras e as ideias são centrais na proposta de alfabetização do método, de modo que a problematização das situações existenciais dos educandos favorece a apreensão coletiva do conceito de cultura e, a partir dele, de outros conceitos fundamentais para consolidar um processo de conscientização, como: “ser humano”, “natureza”, “trabalho”, “diálogo”, “sociedade”, “direitos”, “justiça”, “mundo”, e outras tantas palavras que se articulam às palavras geradoras e dão sentido ao trabalho da alfabetização e de recriação crítica do mundo.
Nesse processo, as imagens – desenhos, pinturas, fotos, vídeos e filmes – constituem o instrumental de trabalho dos mediadores, em razão do seu potencial de instaurar uma dinâmica de objetivação da realidade concreta, que pode ser entendido como um processo dialético de distanciamento e vinculação no real, que possibilita ao educando se dar conta e refletir sobre a realidade em que está imerso. Além disso, as imagens contribuem para promover a vinculação semântica entre as palavras e os seus significados, auxiliando na etapa mais técnica da alfabetização.
É nessa direção que as práticas de educação audiovisual se aproximam e potencializam o Método Paulo Freire. Para além da dimensão representativa da imagem, tal como mobilizada nos círculos de cultura, as práticas de criação audiovisual favorecem também processos como o de apresentação, historicização e criação do real, contribuindo para re-existenciar criticamente as palavras, os significados e os sentidos do mundo dos educandos.
5. Conscientização, expressão e ação política
Em última instância, podemos dizer que o método Paulo Freire propõe a conscientização dos educandos através de uma abordagem humanista crítica que promove dois processos complementares: (1) a leitura da realidade social em que se vive; (2) a problematização da palavra escrita que a cria e a recria. Desse modo, a cultura letrada se constitui como uma reflexão da própria cultura sobre si mesma para dizer-se, e a palavra se constitui como força de transformação do mundo.
Ao contextualizar o processo de alfabetização em uma reflexão mais ampla sobre o modo como as relações humanas se estabelecem na produção e desenvolvimento da sociabilidade contemporânea, a possibilidade de ler e escrever se articula com o reconhecimento do próprio saber, da própria história e do poder de inventar o porvir.
A consciência de si e a consciência do mundo se articulam dialeticamente, e assim podemos nos relacionar com um mundo comum em processo de elaboração constante, e essa elaboração, feita no diálogo, se torna colaboração entre seres livres e críticos, que mobilizam a palavra viva e dinâmica para se comunicar, vivificar e transformar o mundo concretamente.
Num contexto histórico no qual a cultura audiovisual se articula com a cultura letrada e agencia um regime de comunicação e sociabilidade complexo, faz-se necessário pensar, no campo da educação, como os processos de produção, recepção e compartilhamento de imagens e sons subjetivam os indivíduos e as comunidades, moldam valores e comportamentos, influenciando diretamente o movimento histórico, político e social das sociedades. Nesse cenário, a educação audiovisual apresenta possibilidades concretas de dar suporte e potencializar as práticas educativas colaborativas e emancipatórias, ao incluir no complexo sensível, semiótico e discursivo da sua linguagem, a força criadora de mundos que o professor Paulo Freire reconheceu nas palavras.
REFERÊNCIAS
FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido, 17a. ed. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1987.
FIORI, Ernani Maria. Aprender a dizer a sua palavra, in FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido, 17a. ed. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1987.
FREIRE, Paulo. Ação cultural para a liberdade. 5a ed., Rio de Janeiro, Paz e Terra. 1981.
BRANDÃO, Carlos Rodrigues. O que é Método Paulo Freire. 1a ed eBook. São Paulo, Brasiliense. 2017
FREIRE, Paulo. Educação como prática da liberdade, 1a. ed. eBook, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 2015.