Educação Audiovisual e Método Paulo Freire: Entenda como as abordagens se aproximam

Por Felipe Leal Barquete

Nos encontramos no ano do centenário de nascimento do professor Paulo Freire e, infelizmente, por força das contradições do nosso processo histórico, estamos em meio a uma ofensiva agressiva que tenta deslegitimar a contribuição intelectual, ética, política e pedagógica que o professor deu ao campo da educação para o Brasil e toda a humanidade.

Por reconhecer a sua importância e sua influência em nosso desenvolvimento humano e profissional, a Semente publica uma síntese do que aprendemos com Paulo Freire, e como seu pensamento e prática nos ajudam a pensar o mundo contemporâneo e a inventar outros mundos desejáveis e possíveis.

A concepção de educação de Paulo Freire nos foi apresentada por professoras e professoras com as quais estabelecemos parcerias de pesquisa e projetos ao longo dos últimos anos. Em 2019, desenvolvemos uma metodologia de educação audiovisual voltada para potencializar o processo de alfabetização e letramento nas escolas, com inspiração nas experiências que ficaram conhecidas como Método Paulo Freire. Desde então, desenvolvemos uma linha de pesquisa e formação de professoras com ênfase nas aproximações metodológicas que se estabelecem quando mobilizamos a linguagem audiovisual em processos educativos, colaborativos e comunitários.

No texto abaixo, algumas reflexões acerca da práxis freireana foram tecidas em diálogo com o pensamento do autor, bem como com as contribuições dos professores Carlos Rodrigues Brandão e de Ernani Maria Fiori a respeito do tema. A bibliografia se encontra no final do texto.

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Dona Lenita, de cerca de 80 anos, está sentada em roda com um grupo de crianças da escola. Elas apresentam uma maleta para e, ao abri-la, retiram um envelope com dezenas de palavras escritas em folhas de papel. Nesse momento, as crianças explicam para Dona Lenita as regras do dispositivo de criação audiovisual: ela só pode escolher uma palavra, aquela que mais a toca nesse momento e, depois disso, deve apontá-la para a câmera, e falar sobre essa palavra por alguns minutos.  Enquanto isso, outro grupo de crianças escolhem o ponto de vista da imagem, montam o tripé e câmera, e posicionam outro celular em outro canto da roda para gravar o som mais de perto.

Dona Lenita fala sobre a palavra “Raízes” com as crianças da EMEIF José Albino Pimentel

Estamos vivendo uma prática educativa em roda que mais se assemelha a uma vivência griô, um roda de partilha de saberes entre uma ancestral da comunidade e as crianças. Nesse caso em especial, a linguagem audiovisual desempenha um papel central na configuração da experiência vivida. É através dela que a vivência é planejada e concretizada. Antes dessa roda, as crianças promoveram um mapeamento do seu próprio universo vocabular através da exibição de filmes e a reflexão sobre a sua realidade sociocultural, e entre brincadeiras, painéis, saraus e produções audiovisuais, amadurecem a proposta de investigar algumas palavras que lhes pareciam mais importantes.

Assim, ao invés de aprender o significado e o sentido das palavras a partir do livro didático, elaborado em tempos e espaços distantes da vida delas, elas foram saber o que os seus ancestrais têm a dizer sobre aquelas palavras: como elas existem concretamente na vida da comunidade? Qual é o sentido existencial dessas palavras aqui e agora?

O relato acima apresenta uma das experiências vividas com o projeto “O cinema e as palavras” e resultou, entre outras coisas, na criação do filme “Tesouro Quilombola”, realizado no quilombos Gurugi-Ipiranga (PB) em 2019. Ela nos revela como podemos aproximar a Educação Audiovisual do Método Paulo Freire, originalmente concebido para a educação de jovens e adultos.

Vejamos abaixo como podemos pensar essa aproximação a partir de cinco tópicos que nos parecem centrais para acolher as influências e inspirações da práxis freireana ao mesmo tempo em que preservamos a dimensão ética e política do seu pensamento pedagógico.

1. Concepção de educação

O pensamento e a prática psicopedagógica proposta por Paulo Freire formula uma pedagogia enraizada na vida das subculturas da sociedade, e instaura um processo reflexivo de criação e recriação do mundo através da conscientização, pelo ser, do seu papel de sujeito sociocultural e histórico.

Nesse sentido, a educação deve ser um ato coletivo, solidário, onde se ensina e se aprende mutuamente, de tal modo que o diálogo é o aspecto fundante do processo educativo: nas vivências na comunidade, na codificação e descodificação das palavras e temas geradores, na problematização da situação existencial dos educandos e na conscientização a respeito do poder de dizer a sua palavra, os seus valores, narrar a sua história e produzir o seu mundo.

Na Semente, trabalhamos com uma concepção de educação audiovisual que parte do entendimento de que a criatividade é um aspecto fundante do amadurecimento cognitivo e socioemocional nos educandos. Além disso, pela força da sua linguagem e dos processos de produção de imagens e sons, as vivências e práticas educativas com o audiovisual estabelecem pontes entre a escola e a comunidade, entre saberes, valores, sensibilidades e histórias de vida, possibilitando a instauração de arranjos pedagógicos colaborativos inter ou transdisciplinares, nos quais o educando estabelece uma relação direta com a sua cultura e é posicionado como sujeito do processo de aprendizagem individual e coletivo.

Desse modo, ver e criar imagens e sons num contexto educativo estão relacionados ao gesto de estabelecer vínculos dialógicos, investigar o real, partilhar olhares e sensibilidades, instaurar comunidades de aprendizagem e construir mundos em comum.

A professora Ana Lúcia recebe as crianças no Museu Quilombola do Ipiranga, e conversa com elas sobre os tesouros da comunidade.

2. Concepção de mediação

Nos círculos de cultura propostos pelo professor Paulo Freire, o mediador atua como animador dos debates, coordenadores que, no entanto, não dirigem, mas criam as condições para promover a participação ativa dos educandos. 

A “participação criadora” do mediador se funda no entendimento de que é o grupo de educandos que estabelece o seu próprio percurso de reflexão e aprendizagem. O papel da mediação é orientar, favorecer esse processo de modo que a experiência de aprendizagem proposta pelo método se realize a partir do engajamento e da apropriação, pelo grupo, dos recursos e das dinâmicas apresentadas.

Nas vivências com o audiovisual, sejam as práticas de ver ou de criar imagens e sons, a mediação se estabelece na instauração de processos colaborativos de partilha, reflexão, pesquisa e invenção: (1) As atividades de cineclube horizontalizam as relações entre educadoras e educandos, e tem o potencial de favorecer o diálogo reflexivo a partir das questões abordadas nas (ou provocadas pelas) imagens exibidas; (2) Nas práticas de criação audiovisual, o grupo estabelece um percurso criativo-pedagógico, que é tanto interno – subjetivo e intersubjetivo – como externo – objetivo e empírico -, mobilizando os educandos em atividades na comunidade e no território.

Nesses processos, o mediador pratica a escuta ativa e se atenta às motivações e aos movimentos que o grupo estabelece ao longo do percurso, contribuindo com problematizações e orientações que favorecem o processo de criação e aprendizagem.

3. Pesquisa e Codificação

No método de alfabetização de jovens e adultos, Freire sugere que a construção do repertório de símbolos e a codificação plástica do instrumental de trabalho dos círculos de cultura já fazem parte do processo de aprender, de modo que é importante que essa etapa do trabalho seja realizada na, por e com as pessoas da comunidade, em uma ação dialógica entre educadores e educandos.

O processo de pesquisa de campo e codificação das palavras e temas geradores, das fichas de cultura e demais materiais de apoio se configuram, portanto, como um ato criativo, um momento comum de descoberta sobre como a realidade social de um determinado grupo se realiza na vida concreta, no pensamento e no imaginário dos seus integrantes. 

Nesse processo, a educação audiovisual contribui diretamente tanto no processo da pesquisa participante, uma vez que as vivências de criação audiovisual favorecem o acesso às memórias e à subjetividade dos integrantes da comunidade; como na produção de imagens que captam a realidade concreta da comunidade e, portanto, carregam em si um dinamismo semântico cuja força pragmática pode ser problematizada nos círculos de cultura, articulando o teor afetivo, o peso crítico e o acúmulo histórico das palavras, imagens e sons.

4. Descodificação, objetivação e reflexão

Os círculos de cultura produzem modos próprios, solidários e coletivos de pensar. As palavras e as ideias são centrais na proposta de alfabetização do método, de modo que a problematização das situações existenciais dos educandos favorece a apreensão coletiva do conceito de cultura e, a partir dele, de outros conceitos fundamentais para consolidar um processo de conscientização, como: “ser humano”, “natureza”, “trabalho”, “diálogo”, “sociedade”, “direitos”, “justiça”, “mundo”, e outras tantas palavras que se articulam às palavras geradoras e dão sentido ao trabalho da alfabetização e de recriação crítica do mundo. 

Nesse processo, as imagens – desenhos, pinturas, fotos, vídeos e filmes – constituem o instrumental de trabalho dos mediadores, em razão do seu potencial de instaurar uma dinâmica de objetivação da realidade concreta, que pode ser entendido como um processo dialético de distanciamento e vinculação no real, que possibilita ao educando se dar conta e refletir sobre a realidade em que está imerso. Além disso, as imagens contribuem para promover a vinculação semântica entre as palavras e os seus significados, auxiliando na etapa mais técnica da alfabetização.

É nessa direção que as práticas de educação audiovisual se aproximam e potencializam o Método Paulo Freire. Para além da dimensão representativa da imagem, tal como mobilizada nos círculos de cultura, as práticas de criação audiovisual favorecem também processos como o de apresentação, historicização e criação do real, contribuindo para re-existenciar criticamente as palavras, os significados e os sentidos do mundo dos educandos.

Conheça o filme “Tesouro Quilombola”, fruto do projeto “O cinema e as palavras”

5. Conscientização, expressão e ação política

Em última instância, podemos dizer que o método Paulo Freire propõe a conscientização dos educandos através de uma abordagem humanista crítica que promove dois processos complementares: (1) a leitura da realidade social em que se vive; (2) a problematização da palavra escrita que a cria e a recria. Desse modo, a cultura letrada se constitui como uma reflexão da própria cultura sobre si mesma para dizer-se, e a palavra se constitui como força de transformação do mundo.

Ao contextualizar o processo de alfabetização em uma reflexão mais ampla sobre o modo como as relações humanas se estabelecem na produção e desenvolvimento da sociabilidade contemporânea, a possibilidade de ler e escrever se articula com o reconhecimento do próprio saber, da própria história e do poder de inventar o porvir. 

A consciência de si e a consciência do mundo se articulam dialeticamente, e assim podemos nos relacionar com um mundo comum em processo de elaboração constante, e essa elaboração, feita no diálogo, se torna colaboração entre seres livres e críticos, que mobilizam a palavra viva e dinâmica para se comunicar, vivificar e transformar o mundo concretamente.

Num contexto histórico no qual a cultura audiovisual se articula com a cultura letrada e agencia um regime de comunicação e sociabilidade complexo, faz-se necessário pensar, no campo da educação, como os processos de produção, recepção e compartilhamento de imagens e sons subjetivam os indivíduos e as comunidades, moldam valores e comportamentos, influenciando diretamente o movimento histórico, político e social das sociedades. Nesse cenário, a educação audiovisual apresenta possibilidades concretas de dar suporte e potencializar as práticas educativas colaborativas e emancipatórias, ao incluir no complexo sensível, semiótico e discursivo da sua linguagem, a força criadora de mundos que o professor Paulo Freire reconheceu nas palavras.

REFERÊNCIAS

FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido, 17a. ed. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1987.

FIORI, Ernani Maria. Aprender a dizer a sua palavra, in FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido, 17a. ed. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1987.

FREIRE, Paulo. Ação cultural para a liberdade. 5a ed., Rio de Janeiro, Paz e Terra. 1981.

BRANDÃO, Carlos Rodrigues. O que é Método Paulo Freire. 1a ed eBook. São Paulo, Brasiliense. 2017

FREIRE, Paulo. Educação como prática da liberdade, 1a. ed. eBook, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 2015.

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